domingo, 3 de março de 2013

Religiões Tribais


As religiões tribais ou primais são aquelas que os estudiosos chamavam de “religiões primitivas”. São encontradas em culturas ágrafas entre as tribos de populações da África, Ásia, América do Norte e do Sul e Polinésia (GAARDER, 2005, p. 40). O que caracteriza essas religiões são a crença em espíritos e deuses que podem modificar o cotidiano, em geral apresentado por um conjunto de mitos, estórias contados de forma oral e que justifique a realização dos ritos. Nesses povos não há aspectos separados da vida social, ou seja, as políticas e as religiões estão imbuídas de uma mesma justificativa, concretizado pela tradição.

A miríade de forças que controlam o cotidiano, através de espíritos e deuses podem indicar ações como cultos aos antepassados e ritos de passagem. Em geral a figura do sacerdote é unificada e também é o líder político (GAARDER, 2005, 40).

Do Paraíso perdido aos homens “primitivos”

Às vezes, se sente vontade de fugir da “civilização” e voltar para condições mais primitivas, isto é, experimentar outras formas de vida. Sonha-se com um mundo melhor, ou com um paraíso perdido. Será que este paraíso existiu? “As ciências naturais nos ensinam que o mundo, a terra e o homem se desenvolveram lentamente ao longo de milhões e bilhões de anos!” (KÜNG, 2004, p. 19).

Monólito de Uluru (Wikipédia)
Na Austrália, o gigantesco monólito do Uluru, chamado atualmente de Ayer’s Rock; vestígios de vida humana, esqueletos, utensílios e pedra e pinturas rupestres dão conta que é possível o homo sapiens ter evoluído lá. Os aborígenes, seus habitantes originários, deixaram seus símbolos nas pinturas rupestres e os renovam constantemente. Com cerca de 230 mil aborígenes na Austrália, poucos tentam viver da forma tradicional, como viviam os antepassados há dez mil anos – caça, colheitas, frutos selvagens, raízes e pequenos animais são sua dieta. (KÜNG, 2004, p. 19-20).

Como explicar esses homens que viveram na Austrália há milênios “foram desde sua ‘descoberta’ caluniados pelos europeus, proscritos e reprimidos?”. William Dampier, pirata e descobridor inglês, vê os habitantes da região “como as pessoas mais miseráveis do mundo, sem vestuário e sem casas.”  Ele destaca que viviam em solidariedade, “mas seriam feios, quase não se diferenciando dos animais.” (KÜNG, 2004, p. 20).

Os relatos dos “descobridores” europeus afirmavam que os habitantes australianos eram “Homens sem cultura, sem religião”. Será que isto é verdade? O Certo é que as diferenças entre eles eram radicais. Eram chamados de “incultos e preguiçosos, porque preferem a caça, a colheita, a dança e as festas à agricultura, à pecuária e à construção de casas?” (Ibidem). Os nativos poderiam replicar:

“Vocês homens cultos, criaram a agricultura, desenvolveram até mesmo uma indústria agrícola. Nós homens primitivos, não matamos as florestas, não rasgamos a terra para plantar, não fomos atrás de propriedades privadas nem de acumular posses. Vocês homens cultos, desenvolveram a pecuária e matam os animais aos milhões. Nós, homens primitivos, não domesticamos os animais nem criamos unicamente para os matar e comer. Vocês homens cultos, construíram casas, aldeias e até mesmo cidades imensas. Nós renunciamos a moradias fixas e, para medida do possível, a nos envolvermos em roupas que nos isolem da natureza e dos ciclos naturais” (KÜNG, 2004, p. 20-21).



Os mais antigos vestígios de religião


Homo Neanderthalensis (Wikipédia)
Os europeus não podem se considerar superiores. O que existia antes da escrita, a história e a ciência? Por evolução procederam da natureza. O primitivo homem de Neandertal, parente próximo do homo sapiens, possuía elevada cultura: “sepultava os mortos, cuidava dos idosos e dos doentes, presume-se que possuísse uma linguagem elevada e evoluída.” Extintos há cerca de trinta mil anos, deixam lugar ao homo sapiens. Na Austrália foi encontrado esqueleto do homo sapiens com trinta mil anos de idade. “Estava coberto de ocre, sinal mundialmente difundido da ideia de uma vida após a morte. Ou seja, esse homem, ao que tudo indica, foi sepultado ritualmente. Um primeiro testemunho claro da cultura e da religião entre os primitivos!” O que é a cultura então? Nela inclui-se a religião? A cultura “é o conjunto de conhecimentos e procedimentos que caracterizam uma determinada sociedade humana, sejam eles de natureza técnica, econômica, científica, social ou religiosa” (KÜNG, 2004, p. 22).

Da história cultural aos ritos religiosos


Tudo o que caracteriza os aborígenes da austrália, em termos de religiões tribais não significa que eles estejam na idade da pedra. Significa sim, que houve muitas modificações em relação à forma com a qual sua manifestação religiosa se configurava no passado em relação à atualidade. “Os antropólogos dos nossos dias constataram: de tempos em tempos os aborígenes assumiram rituais e cânticos, mas também recursos e técnicas estilísticas e artísticas. Descobriram novos objetos sagrados, adaptaram seus mitos às condições modificadas.” (KÜNG, 2004, p. 22).
Historicamente as colonizações feitas às regiões onde existem povos tribais, eram considerados como “primitivos”, homens sem religião, se civilização, e suas manifestações eram consideradas superstições e magias. Há, no entanto, uma questão a se fazer em relação aos aborígenes da Austrália: “Porque os homens, antes de tirarem água da fonte, primeiro jogam nela um pedra? Por respeito à natureza: eles estão pedindo licença aos espíritos da água. Será isso uma superstição? Não só: a água poderia estar envenenada, a fonte da próxima vez poderá estar seca … Aqui nada é claro e evidente. Muita coisa os povos primitivos só explicam pela mitologia” (KÜNG, 2004, p. 24).

Havia na realidade um preconceito em relação à religião desses povos e, concretamente, considerava-se que “a religião teria se desenvolvido a partir da magia.”  Vê-se que as religiões tribais se desenvolveram de forma totalmente assistemática e não numa sequência: magia; crença nos espíritos; crença nas almas; crença em deuses; Fé em Deus. Tais explicações demonstram uma espécie de desenvolvimento fixo o que não ocorre na realidade. (KÜNG, 2004, p. 25).

Como encontrar empiricamente esta religião? Na visão de Küng pode-se encontrá-la em desenhos rupestres. Tais desenhos serviam para contar estórias, mas também possuem um significado cerimonial. Quanto a esses “significados os aborígenes guardam segredos”. Além dos desenhos, as decorações e adornos em pedras e paus sagrados possuem um significado religioso. T. G. H. Strehlow identificou grande diversidade de cerimônias religiosas nas tribos da Austrália. Há características nesse tipo manifestação que são evidentes: “Céu e terra são eternos. E céu e terra têm cada qual seus próprios seres sobrenaturais.” E Deus para eles? As tribos creem num Grande Pai que é imortal, tem pés de ema e tem mulher e filho ou mulheres e filhos – em algumas tribos. Esse “Deus” para eles vive no céu, separado do que acontece na terra, por isso não há veneração, oração, cânticos e oferendas dirigidas a ele (KÜNG, 2004, p. 25).

Dentre as diversas características que pode-se encontrar nas religiões tribais dos aborígenes australianos são de que a terra se formou a partir dos grandes espíritos ancestrais primitivos. Eles não vieram do céu, mas do chão. Em suas concepções a natureza está cheia de mistérios sobrenaturais. “A força vital incriada, eterna – é ela que atua em todas as coisas. Uma religião como essa, ligada à natureza, enraíza o indivíduo na eternidade. Confere-lhe uma identidade, uma consciência de um alto valor pessoal” (KÜNG, 2004, p. 28).

Entre os anangu, “que moram em torno do Uluru, falam de tjukurpa, a 'lei' dada desde o início pelos espíritos dos ancestrais. Tjukurpa abrange religião, ética, ritos, todo o modo de viver”. Para antigos antropólogos os aborígenes viviam exclusivamente para a sua sobrevivência. “A verdade é exatamente o contrário: para eles, desde tempos imemoriais, junto com toda caça e colheita, a vida inteira é uma série ininterrupta de cerimônias, danças e rituais. Os feitos dos ancestrais e de seus espíritos – objetivos do mito (em grego, “narrativa”), das tradições da origem de uma tribo ou de um povo – são transmitidos de geração em geração sendo eventualmente adaptados às circunstâncias”. Esses aspectos da religião tribal indica que todas as coisas vieram dos tempos primitivos e os responsáveis pela ordem das coisas sagradas – tanto os bens materiais quanto os espirituais – foram os ancestrais. (KÜNG, 2004, p. 28-29).

Para a tribo walpiri, ao norte do Uluru, as mulheres fazem dança de iniciação. Elas “pintam o corpo – com ocre, barro e cinza? Não só por razões de estética e de enfeite. A tinta fornece uma nova pele para a dança, uma personalidade: sem canto não existe pintura, e sem pintura não se dança.” Os símbolos pintados são misteriosos e refere-se às leis e tempos primordiais, mas elas não indicam informações claras sobre isto (KÜNG, 2004, p. 30).

E em relação às religiões tribais pode-se afirmar que:
“Certamente um papel central é desempenhado aqui – como em todas as religiões tribais – pela sexualidade humana: o simbolismo sexual como expressão de unidade do eterno princípio masculino e feminino, ou mesmo daquela esterna força vital incriada que já se manifesta nos espíritos ancestrais, e que deles passa a atuar sobre todos os seres vivos, para que continuamente a vida possa ser conservada e transmitida” (KÜNG, 2004, 30).

O Etos Primordial

Para uma discussão relacionada ao significado do etos compreendido por Küng, será citado em forma direta seu texto sobre o tema nas religiões tribais:
“Chama nossa atenção que certos padrões morais elementares parecem ser os mesmos em todo o mundo. Normas éticas não escritas constituem a “rocha”(M. Mauss) sobre a qual a sociedade está construída. Podemos chamar isso de etos primordial, que constitui o núcleo comum do etos comum da humanidade, para um etos global. Um etos global possui,pois seu fundamento não apenas – sincronicamente – nas normas básicas hoje comuns às diferentes religiões e regiões. Ele tem seu fundamento também – diacronicamente nas normas básicas das culturas tribais, comprovadas desde as eras pré-históricas. (…) Novos estudos comparativos estão surgindo (…) E aqui é impossível subestimar a importância dos mitos e rito para a ética. Já para os pequenos grupos tribais da Austrália eles garantem uma certa ordem, fundamentada nos fatos sociais básicos. (…) Quatro fatores de ordem são determinantes até hoje: O sexo: para a divisão do trabalho; a idade: para a  hierarquia social; o parentesco: para a prática matrimonial; o totem: para a coesão mútua fora da própria família (e ao mesmo tempo para a proteção da fauna e da flora). (…) Ma de onde provém esses padrões éticos, esses valores e normas? São justamente os aborígenes que nos dizem que eles não caíram do céu. Foram configurados pelos primeiros ancestrais, por seres perfeitamente terrenos. Do ponto de vista do desenvolvimento fica claro: normas, valores e visões éticas concretas foram-se formando aos poucos – em um processo sociodinâmico extremamente complexo” (KÜNG, 2004, P. 32-33).

Por influência cristã ou islâmica o povo de Zimbábue acreditam no “Mwari, o único Deus criador”. Pode-se encontra a tradicional religiosidade africana, segundo a qual os fatores mais importantes que determinam o mundo e o homem são forças invisíveis. O mais fundamental nessa religião é a relação com os espíritos ancestrais. Nas religiões tribais da África negra uma ampla faixa de espíritos: Espíritos ancestrais “que agora se manifestam como espíritos protetores da família, sobretudo das crianças”; Espíritos errantes “que, não tendo sido corretamente sepultados em terras estranhas, não querem ficar esquecidos; os Espíritos tribais: “que se preocupam com o bem da tribo e do chefe. (KÜNG, 2004, p. 41).

A manifestação dos ancestrais é através do médium, quem o espírito tomou posse:
“Tendo recebido dons especiais do espírito, só esse médium é capaz de acalmar, de tornar favoráveis ou de expulsar os maus espíritos. Como? Através de orações, cantos, danças ofertas, como, por exemplo, o sacrifício de uma cabra, o que acontece sobretudo na alegre festa da ação de graças pela colheita” (KÜNG, 2004, p.41).

Há na África um grande número de curandeiros que proporcionam as curas religiosas pela fé, oração e pelos espíritos – o que naturalmente acontece em todas as culturas.  Ao curandeiro e intérprete “se atribuem forças espirituais para curar doenças e para interpretar quem é o culpado por elas.” (KÜNG, 2004, P. 42).

Os povos da África, antes da colonização eram considerados selvagens, primitivos, grosseiros e sem cultura. Tal afirmativa é engano, pois nas culturas do Egito, Núbia e Etiópia conseguiram chegar a uma cultura é comparada à cultura medieval da Europa. O que não representa nenhum demérito, o desenvolvimento desses povos representa que suas culturas e religiosidades com suas solidariedades, valores e visões holísticas do mundo podem em muito contribuir para uma ética mundial.

Referências
KÜNG, Hans. Religiões do mundo: em busca de pontos comuns, Campinas, Versus editora, 2004.
GAARDER, Jostein. HELLERN, Victor. NOTAKER, Henry. O livro das religiões, São Paulo, Companhia das letras, 2005.

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