quarta-feira, 16 de abril de 2014

Relações significativas entre ciência e religião


Me. Manoel Gomes Rabelo Filho
A relação entre a ciência e a religião tem sido, durante sua história, ora contraditórias, enquanto são realizadas oposições tanto de objetivos quanto de racionalidades, ora significativas, enquanto as mútuas racionalidades, entre fé e razão, passam a aprofundar ideias, descobrir sentidos mútuos e reformular suas posições extremadas.

Elementos teóricos da relação ciência e religião

Uma das reflexões bem inspiradoras sobre o fenômeno religioso realizada por Georg Simmel (1858-1918) foi a de considerar que “um de seus eixos é uma dimensão humana geradora de sentidos – que denomina 'religiosidade' – que o filósofo distingue de suas manifestações sócio-históricas – as religiões” (RIBEIRO, 2006, P. 110-111). Isto possibilita novas luzes aos estudos sobre o tema.
Mesmo os filósofos das ciências ainda não chegaram a um acordo sobre o que é ciência e o que não é. A história da ciência, que não se configura como ciência e nem como história é considerado um estudo para além da história e da ciência. Acredita-se que esta história da ciência possui um método diferente das duas disciplinas que as aglutinam (história e ciência). Ela discorre sobre os conceitos acerca da ciência e os fatores científicos sobre um problema. “Por exemplo: a teoria da evolução de Lamarck estava bem formulada e fundamentada para a sua época?” (MARTINS, 2014, p. 306). Esta marca significativa que a ciência recebe e, os estudos que dela tentam dar conta para ampliação e aprofundamento de seus conceitos, ideias e teorias, fornecem dados importantes e às vezes apresentam algumas lacunas de fundamentação metodológica. Lamarck por exemplo faltou indicar formas intermediárias de conchas fósseis e atuais, o que com os dados da época poderia ter sido feito. A ciência, neste sentido, procura formular suas teorias dentro de seus contextos históricos e que neles estão disponíveis informações para sua realização. A informação indisponível ou que carece de dados objetivos e comprovações empíricas não poderá ser utilizada como pressupostos de ideias científicas.
Os dados científicos não são isolados de outras formas de conhecimento. É importante avançar para além das fronteiras da ciência.

Os homens de ciência, ao se constituírem teorias e modelos explicativos para os fenômenos da natureza, dialogam com outros homens que exercem atividades aparentemente distantes da científica, como teólogos, artistas plásticos, músicos ou poetas. Seria preciso navegar também nessas áreas para encontrar caminhos em que pudéssemos transitar mais amplamente (BRAGA, GUERRA, REIS, 2007, p. 10).

A relação entre ciência e religião foi uma relação conflituosa desde o século XIX. O iluminismo, com seus pressupostos saudosistas de destacar a ciência acima de todas as possibilidades de compreensão da vida e do ser humano, fornece a maioria das justificativas para dar à ciência maior estatuto que às outras formas de conhecimento.
Tradicionalmente era a filosofia que assumia este papel de grande mentora da humanidade. Na Idade Média passou a ser a Teologia. Com os pressupostos das ciências estabelecidos a partir do século XVI, a ciência e a razão chegam a ser “endeusadas” como únicas a darem respostas para todos os problemas humanos.
O positivismo, filosofia que pretende estabelecer que a ciência é a forma de conhecimento mais elevada, indicava uma espécie de degrau em que os mitos e a religião estão entre as formas de conhecer imaturas. A filosofia seria aquela que levaria ao conhecimento das possibilidades da ciência e portanto estaria no segundo degrau. No mais alto grau estaria a ciência, que dispensaria todas as outras formas de conhecimento, pois somente ela possibilita a “verificação”, como fonte da verdade última e definitiva.
Esse esquema mostra como o positivismo pensa as formas de conhecimento de maneira progressiva. O posterior supera o anterior e o elimina, restando no final somente a Ciência:

Mitos → Religião → Filosofia → Ciência

O marxismo proporcionou cerceamento das igrejas nos países de socialismo real. Militantes comunistas e cristãos passaram a fazer resistência ao nazismo e ao fascismo, e isto modificou a situação de oposição. Marx mesmo pensara sobre a religião como expressão do mundo real e protesto contra este mundo: “O homem é um ser abstrato, fora do mundo. O homem é o mundo dos homens, o Estado, a sociedade. Este Estado, esta sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque são um mundo invertido” […]. “A miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real e, de outro o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, assim como é o espírito de uma situação carente de espírito. É ópio do povo”. (KARL MARX).
“A situação em que o homem vive é 'uma situação que necessita de ilusões', daí a busca da religião. E é por isso que 'a crítica do céu se transforma em crítica da terra'” (LESBAUPIN).
Marx entende que a religião desaparecerá não pela luta anti-religiosa, mas que perderá sua razão de ser no momento em que a sociedade for como “obra de homens livres associados, agindo conscientemente e mestre de seu próprio movimento social” (MARX).
Émile Durkheim, ao indicar um tempo de renascimento do misticismo, expressa sua fé no futuro da razão. Ele previa um futuro em que o racionalismo científico se transformaria em regra de ação para o futuro. Indica a religião como um fato social constituída de gesto social (rito), na qual a fé se cria e se recria constantemente. Para Durkheim “a função da religião, e do culto é criar coesão”, no sentido de que possam conhecer o laço social e que possam entender o surgimento do novo e das rupturas (SANCHIS).
Outro aspecto importante que Durkheim referenda é a questão do sagrado. Para o seu entender o sagrado possui uma origem social: “Quando a religião parece caber inteira no foro íntimo do indivíduo, ainda assim, é na sociedade que encontra a fonte viva da qual ela se alimenta”. (DURKHEIM apud SANCHIS, p. 55). É bom lembrar que para o autor não é mais o campo inteiro da ação social que está destinado a ser dominado pela razão científica. Por certo, tratando-se de modelar uma imagem do mundo conforme à sua realidade, é a ciência, instrumento especificamente humano, que é chamada incontestavelmente, a substituir quase inteiramente a religião.” (SANCHIS, p. 58). Essa informação, acrescida à ideia de que a ciência é representação de outra origem e a religião, “sua verdadeira função não é nos fazer pensar, de acrescentar às representações que devemos à ciência representações de outra origem e de outro caráter, mas de fazer-nos agir e ajudar-nos a viver” (DURKHEIM, Formas elementares...). Há duas dimensões que a religião possui prioridade e que não há na ciência: a das regras nas relações sociais, configuradas pela dimensão ética e “a da motivação pela vida societária coletiva, que o mundo ritual, conjunto simbólico-expressivo energizado pelas potências emocionais, proporciona aos homens reunidos”. (SANCHIS, p. 59). Permanece então uma pergunta: Quando e em que medida a ação coletiva nos ritos podem dispensar a racionalidade? Então como Durkheim define a religião e que relação ela pode ter com a ciência? É uma projeção ideal, necessária, pois sempre que possível eles estarão atendendo a grandes ideais.
Observa-se que no pensamento de Durkheim há um diferencial em relação aos outros teóricos, pois como a religião é necessária para a sociedade, ela não necessariamente deixaria de existir, mas se modificaria, transformaria e apareceriam outras manifestações religiosas derivadas ou não de religiões anteriores.
Max Weber considera que a sociedade moderna ocidental “é fruto de uma conjunção única de fatores que historicamente se combinaram no contexto da civilização ocidental judaico-cristã” (MARIS, 2011, p. 70). O processo de racionalização do mundo ocidental toma algumas peculiaridades da religião. Weber não concebe o fenômeno histórico como único, em termos de se guiar para um “progresso”, possuindo causas que possam justificar configurações históricas. Neste sentido é que ele se afasta do modelo do materialismo histórico e das concepções evolucionistas, características de sua época. Ele rejeita aproximação das ciências sociais com a biologia, de cunho evolucionista, e vê mais importância no método histórico e comparativo.
A visão antievolucionista e anti-iluminista de Weber o fazem reconhecer “uma consciência da limitada competência da ciência e do pensamento racional modernos [...]”. A racionalização moderna ocidental proporcionou “um processo de crescente intelectualização com elaboração de princípios, regras, critérios que pretendem ter validade universal e coerência interna, num projeto próximo ao do matemático” (MARIS, 2011, p. 73). Isto é específico da sociedade ocidental, onde se deixa de lado o carisma e passa-se a valorizar o racionalmente construído, elaborado e explicitado. Para entender esse tipo de racionalidade Weber “discute a afinidade do protestantismo com o capitalismo” […] e “compara diferentes civilizações e identifica a raiz dessa racionalidade específica nas peculiaridades da religiosidade que constitui a matriz cultural do ocidente”. (MARIS, 2011, p. 73).
O interesse de Max Weber pela religião se dá “na medida em que ela é capaz de formar atitudes de disposições para aceitar ou rejeitar determinados estilos de vida ou para criar novos” (MARIS, 2011, p. 74) e não a especificidade do fenômeno religioso. Através dela se pode “conhecer os motivos e intenções, de um conjunto de ações sociais.” (MARIS, 2011, p. 75). “O protestantismo teria criado um estilo de vida, um ethos que teria uma afinidade eletiva com o modo de produção capitalista, segundo Weber” (ibid.). Para Weber o protestantismo motivou mão de obra para a produção de riquezas e para uma poupança, antes que o capitalismo tivesse sua autonomia. Diferente do catolicismo que investia nas “almas” virtuosas que faziam ascese monástica e o uso de riquezas para ornar de ouro as igrejas. O protestantismo exigia ascese de todos os fiéis e diminuiu o número de sacramentos e incentivou a leitura e interpretação da bíblia: “Era assim uma religião menos ritualista, mais intelectualizada, mais ética, menos encantada, menos 'mágica'” (MARIS, 2011, p. 76).
Em sua noção de “tipos ideias”, que fizeram entender a racionalização, Weber destaca o mago, o sacerdote e o profeta. “O mago tem o seu poder legitimado pela tradição, o sacerdote pela instituição e por doutrinas/teologias racionalmente construídas, e o profeta por suas qualidades extraordinárias – o seu carisma pessoal” (MARIS, 2011, p. 79). Essa coerência lógica não indica que Weber via essas noções na realidade mesma. Os tipos ideias servem apenas como referência, e não como algo da realidade. O mago seria o que faz com que os seres sobrenaturais – espíritos, deuses, entidades – sejam obrigados a realizar sua vontade. O sacerdote é o oposto, pois a atitude é de reverência e submissão ao sobrenatural. O fracasso do pedido feito pelo sacerdote é visto como o sinal do poder sobrenatural e o fracasso do mago indica que seu carisma o abandonou e é abandonado pelos fiéis. O mago trabalha de forma autônoma e o sacerdote obedece a uma instituição. Há uma tentativa dos sacerdotes desqualificarem o poder dos magos, neste sentido é que “a oposição entre magia e religião seria fruto da luta dos especialistas do sagrado ligados a uma instituição contra os especialistas autônomos” (MARIS, 2011, p. 81). Ocorre uma espécie de racionalização da passagem da magia para a religião. A diferença entre elas é que são racionalidades distintas e não no sentido que a magia seria uma irracionalidade. Existe racionalidade na magia, mas de outro tipo, diferente da racionalização ocidental que tem o caráter calculador. O profeta seria aquele que realiza “rupturas fundamentais em uma religião”. “Os profetas pregavam uma religião de salvação em oposição a religiões ritualistas e práticas mágicas” (MARIS, 2011, p. 82).
O caso específico do profeta1 é que defende uma ética religiosa em substituição a tabus. Essas éticas tem características universalistas e fraternais, implementando uma racionalização religiosa com a moral e a ética que superam a noção de pureza/impureza advindas dos tabus. Os profetas emissários – próprios das religiões do oriente médio (zoroastrismo, judaísmo, cristianismo, islamismo) - “pretendiam ser um instrumento de transformação da religião, e da vida, e assim propunham leis, as praticavam e cobravam sua observância por parte de todos. Já o profeta exemplar defende uma religião de salvação de tipo contemplativo. Ele é visto como um santo, um exemplo. Buda seria um profeta exemplar” (MARIZ, 2011, p. 83). O profeta emissário conduz à ascese e o exemplar à mística. Na religião ascética o fiel é um instrumento de Deus e sua postura é aprender a se controlar dos impulsos naturais e procura transformar o mundo para servir a Deus. A religiosidade mística desenvolve a contemplação em que o fiel se vê como receptor do divino. Tanto a ascese quanto a contemplação podem ser para dentro ou para fora do mundo. (Ibid., 2011, p. 83).
O que Max Weber fez foi “destacar aspectos da lógica interna das distintas concepções religiosas para assim compreender motivações e sentidos que possam dela surgir” (MARIZ, 2011, p. 84). Deve-se destacar que para ele o protestantismo puritano desenvolver uma ascese para salvar almas e não desenvolver o capitalismo, pois este último é “uma consequência não intencional” (Ibid., 2011, p. 85).
Outro autor com significativa contribuição à esta relação entre a ciência e a religião foi Marcel Mauss. Este autor possui uma obra bem representativa em relação à sociologia da religião. A transição entre os séculos XIX e XX foi marcada pela laicidade e autonomia das repúblicas em questões confessionais na França. Surge o direito do cidadão à prática religiosa e esta liberdade transforma a universidade. Na Sorbone a teologia foi retirada em 1885 e foi criada uma cessão de Ciências religiosas para produzir o conhecimento científico sobre o tema. “Por 'científico' entendia-se um conhecimento independente das autoridades teológicas e ideológicas, baseado no modelo de liberdade e autonomia das ciências da natureza: uma busca imparcial e livre da verdade. sem apologias” (MENEZES, 2011, p. 102-103). As interpretações eram divergentes, pois o fenômeno religioso era tratado de forma parcial. Os conservadores viam no sagrado algo incontestável da natureza humana, os liberais viam a religião como uma primitividade, erro da mente humana. Os durkheimianos desenvolveram uma via intermediária. Viam na religião algo importante para o vínculo social e a tratavam como um fenômeno social real. É neste sentido que Marcel Mauss “assumiu a missão de aplica o método sociológico aos fenômenos religiosos” (MENEZES, 2011, p. 104).
Marcel Mauss afirmava que não existia povo não civilizado, mas civilizações diferentes. Procurou resguardar a sociologia da religião das pré-noções da tradição judaico-cristã, realizou análises das religiões, discutiu as interpretações, questionando as reconstruções hipotéticas sem a realização de fatos cientificamente verificáveis. Baseou-se na Antropologia social inglesa para avaliar os dados etnográficos. Escreveu sobre o sacrifício, a magia e a prece, temas consagrados pelas teorias das religiões. Junto com Hubert, Mauss entende o sacrifício como consagração, caracterizado pela passagem do mundo comum ao religioso. Um sacrifício que proviria do sagrado, que comunica o profano e o sagrado por meio de uma vítima e se demonstra ambíguo exercendo forças tanto para o bem quanto para o mal (MENEZES, 2011, passim p. 105-109).
No Ensaio sobre a magia Mauss faz críticas à noção de que a magia seria de tempos ancestrais e explicadas pela lei da simpatia. Além de ter um caráter transgressor, a magia tem uma face social. Seus rituais mágicos, fórmulas demonstram a presença da sociedade na magia. “E aquilo que viabiliza a magia, sua base de sustentação, seria a crença socialmente partilhada nos poderes eficazes manipulados pelo mágico” (MENEZES, 2011, p. 110). Mauss e Hubert não acreditam que a religião teria saído da magia, desta forma descartam que magia e religião teriam uma sequência no pensamento humano, mas uma paralelidade. Mais do que forma deturpada de religião, a magia representa um enquadramento acusatório da religião do outro, a ideia de uma falsa religião (MENEZES, 2011, p. 111).
Em A prece Mauss realiza, a partir de dados etnográficos sobre as cerimônias australianas de intichiuma, uma descrição dos procedimentos metodológicos de seu trabalho. A prece possui relação direta com outros fenômenos sociais – fórmulas jurídicas e morais, os juramentos –, fórmulas que produzem efeito aos serem proferidas. O estudo da prece se justifica pelo fato de ser “um ritual oral de recitação de palavras, onde gesto e palavra, ou ação e representação aparecem articuladas, a prece seria uma crença posta em prática, ao ser enunciada, cuja análise permitiria elucidar as relações entre mito e rito” (MENEZES, 2011, 112). A bênção cristã – In nomine patris – combina dogma, liturgia e envolve uma série de elementos aglutinados ao longo de muito tempo, aos quais são imperceptíveis pela consciência individual. Portanto, “uma prece não é apenas a efusão de uma alma, o grito de um sentimento. É o fragmento de uma religião […], ação tradicional eficaz que versa sobre coisas sagradas” (MAUSS apud MENEZES, 2011, p. 113). Ao observar os contextos, pode-se considerar a prece um produto coletivo, obra de grupos sociais usados em diversos momentos da história, ainda que sejam as mesmas, mas com sentidos diversos. “Por isso, para recuperar os sentidos específicos em cada momento, é fundamental relacionar as preces à vida das coletividades que as empregavam” (MENEZES, 2011, p. 113). A prece também depende da cerimônia, ao qual muitas vezes o mesmo ritual pode assumir sentidos diversos, com diferentes intenções. “Para Mauss uma prece deveria ser entendida duplamente em referência a seus contextos social e ritual” (MENEZES, 2011, p. 113).
A intenção de Marcel Mauss era realizar análises com diferentes métodos para redefinir o tema científico estudado. Pretendia elaborar explicações rigorosas dos fenômenos religiosos a partir da “sua concepção de religião como articulação de crenças e práticas”, o que “permitiu o deslocamento da análise das formas institucionalizadas ou oficiais da religião para as formas concretas em que ela é vivida, dando espaço para a incorporação do ponto de vista dos agentes e as contradições existentes” (MENEZES, 2011, p. 115). Mauss, então, modifica os conceitos empregados de religiões da África, Ásia, Oceania, Américas, a partir da experiência cristã, vistas como inferiores e primitivas. Ele “mostrou a necessidade de cuidado constante do pesquisador quanto a seu instrumental”, […] por outro lado, Mauss alarga as fronteiras da sociologia da religião na qual “ela deveria se dedicar às crenças e às práticas religiosas de toda a humanidade” e não apenas “as religiões 'do livro'” (MENEZES, 2011, p. 116).
E. E. Evans-Pritchard, antropólogo inglês do século XX, foi pesquisador de campo e teórico que superou o funcional-estruturalismo, passando da função ao significado na perspectiva hermenêutica, estrutural e histórica. Realizou expedições antropológicas entre os azande e nuer do Quênia e do Sudão (África). Deu à etnografia um estilo firme e seguro, límpido, comedido equânime, pausado, superior e conversacional, sendo assim um escritor homogêneo da antropologia. Seu trabalho se caracteriza por ser produzido sem a interferência do meio ou da subjetividade do autor. Estudou o funcionamento da bruxaria, a organização sedimentária e a imagem modal da divindade entre os nuer ou os azande. (STEIL, 2011, p. 125-129).
A contribuição de Evans Pritchard em relação ao método da observação participante dá distinção à antropologia profissional e procura desenvolver uma abstração estrutural na análise etnográfica. A sua perspectiva era primeiro “apreender as características significativas de uma cultura ou tradição e traduzi-la para a própria cultura”, o segundo momento “intenta, através da análise, decodificar as formas ou estruturas subjacentes de uma sociedade ou cultura,” e o terceiro nível “compara, implícita ou explicitamente, as estruturas sociais de diferentes sociedades”. (STEIL, 2011, p. 129-130).
Um dado importante em Evans-Pritchard do trabalho feito entre os Azande é ter reconhecido que nem sempre a religião está vinculada a uma instituição. Já o trabalho feito junto aos Nuer mostra que suas crenças estão pautadas no mundo material. O que pode ser fundante numa religião pode não existir noutra. O significado estrutural de distintas sociedades podem funcionar muito bem, ainda que com bases distintas. Evans-Pritchard teve a preocupação de “buscar a lógica e a racionalidade que práticas, sentimentos, ideias e valores – irracionais, anárquicos e pagãos – possam ter no sistema social ou religioso do nativo” (STEIL, 2011, p. 132). Esta compreensão da racionalidade que os sistemas sociais dos nativos leva a uma compreensão razoável e inteligível para apreender diversos costumes e além do mais “ele acaba estabelecendo as bases para o argumento a favor da validade de qualquer concepção do mundo que se situa nos marcos de uma cultura ou tradição […]. Desde o momento em que encontrou um sentido para as práticas de bruxaria e oráculos africanos, parece que todas as demais práticas religiosas se tornam razoáveis” (STEIL, 2011, 133).
Em sua obra Bruxaria, oráculos e magia entre os azande, Evans Pritchard “analisa as crenças e práticas de bruxaria, feitiçaria, oráculos e magia entre os azande, situando-as dentro de uma sistema relacional e integrado, que as torna compreensíveis e racionais”. As crenças são místicas pois dependem da existência de certos fenômenos naturais. A bruxaria para os azande é uma herança e se apresenta fisicamente no corpo do bruxo. Além disso alguém pode ser bruxo sem ter consciência disso e ainda ser causada por infortúnios familiários e práticas maléficas (STEIL, 2011, p. 135).
O que não tem explicações por causas físicas e naturais é admitido como bruxaria para os azande. Os bruxos são vulneráveis a práticas e rituais, portanto, no campo mística sua ação pode ser neutralizada ou mudar o curso da ação. Os feiticeiros têm conhecimentos sobre remédios e podem identificar o bruxo, mas não são confiáveis. Em geral os azande preferem consultar os oráculos, que são realizados através de veneno especial dado a uma galinha, na qual a pergunta feita é respondida com a morte ou a vida da ave (STEIL, 2011, p. 136-137).
Para Evans-Pritchard a magia é usada pelos azande para obter saúde ou realizar vingança e que possui características místicas para combater as doenças. Na magia deve-se encontrar o bruxo para causar a sua morte por meios místicos.
Em suma, na vida dos azande, bruxaria, feitiçaria, oráculo e magia estão interligados num único processo. E, como escreve Evans-Pritchard: “A morte evoca a noção de bruxaria; os oráculos são consultados para determinar o curso da vingança; a magia é feita para neutralizar a causa; os oráculos decidem quando o mágico deve executar a ação contra a vingança; e, uma vez que o procedimento mágico terminou, o remédio é destruído” (STEIL, 2011, 138-139).
Já no seu trabalho A religião dos Nuer Evans-Pritchard discute sobre a “concepção religiosa e social expressa por este grupo africano tanto na forma ritual quanto por meio de seu credo e de sua cosmologia” (STEIL, 2011, p. 140). Os nuer não estão preocupados com o pós-morte e nem com os espíritos dos mortos ou fantasmas. Os espíritos para este povo podiam ser os de cima, associados ao ar, aos rios e à luz, e os espíritos de baixo, associados às plantas e animais. Os nuer consideram os totens – animais e plantas – como um símbolo e não elas em si mesmas. Há uma relação entre os totens e a estrutura social. O espírito reflete a ordem social e os espíritos totêmicos são mais imanentes, materiais. “Evans-Pritchart sugere, a partir de sua observação dos nuer, que em todas as sociedades humanas o pensamento religioso reflete a ordem social.” Os espíritos totêmicos se relacionam a uma linhagem, um grupo social, e este grupo exclusivo expressa a sua relação totêmica com Deus através do respeito às criaturas, e estes são símbolos da relação (STEIL, 2011, 141-142).
O criador, representado pelo espírito de cima, é protetor de todos, das linhagens e das famílias; representado pelos espíritos de baixo, da natureza e do fetiche, é o protetor dos indivíduos. Não é possível conhecer o espírito em si, pois ele só se manifesta na natureza. Quanto à lógica presente nas analogias simbólicas elaboradas pelos nuer, Evans-Pritchart entende que elas se estabelecem “num nível imaginário do pensamento onde a mente opera como figuras, símbolos, analogias e metáforas poéticas. Sua interpretação dessas crenças se faz, portanto, em termos de associações simbólicas dentro de um sistema cosmológico estruturado específico que dá sentido e torna reconhecível tais relações para aqueles que partilham do mesmo sistema.” (STEIL, 2011, p. 144).
Esses cientistas trazem uma perspectiva importante para o conhecimento da relação entre ciência e religião. Primeiro é a compreensão de que a ciência, dentro de suas possibilidades, buscar meios para entender a religião como um fenômeno, partindo do pressuposto de tradições culturais diversas, respeitando a fé dos crentes, para daí passa a entender mais profundamente o seu significado.

Perspectivas das aproximações entre Teologia, Religião e Ciência

À Teologia coube desenvolver o discurso racional de defesa de cada tradição religiosa. Ela será então redefinida como hermenêutica da tradição de fé, e como a que vai aprofundar a crítica da finalidade das ciências e ao mesmo tempo cuidar de seu próprio método. A Teologia investigará o sagrado das tradições religiosas com objetividade, na interpretação dos mitos, ritos e símbolos de cada tradição de fé. Ela colabora com a interpretação dos símbolos no campo interdisciplinar da história comparada das religiões e na crítica psicossocial ao fenômeno religioso. Será então uma teologia em diálogos com as ciências sociais, humanas e as da natureza usando o método da fenomenologia da religião. Este método científico consiste na observação, explicação dos mitos, dos símbolos e dos rituais. Neste sentido procurará interpretar a religião do ponto de vista do crente e o valor dessas crenças para as suas vidas (ARAGÃO, 2010).
Foi no estudo comparado das religiões que a fenomenologia da religião foi usada como método de estudo das religiões. Pode-se atribuir a R. Otto (1869-1937) em sua obra O Sagrado, o desenvolvimento deste método. Ele confrontou os grandes temas religiosos tendo a base na compreensão e na participação no mundo das religiões. Mantêm-se o plano da experiência vivida nas religiões, o seu modo de sentir e entender aquele que crê, a compreensão da linguagem da experiência religiosa, o transcendente como princípio essencial que é captado pelo homo religiosus. Em síntese pode-se afirmar que a fenomenologia da religião estuda as expressões religiosas em seus contextos com vistas a considerar o seu sentido, sua estrutura e coerência e sua dinâmica. (ARAGÃO, 2010).
O surgimento de novas crenças no Brasil forneceram a fonte para os estudos científicos, em especial a partir do final do século XIX. As pesquisas acadêmico-científicas sobre a temática religiosa se desenvolve mais ainda a partir de 1971, quando foram estruturados os programas de pós-graduação em sociologia e antropologia. A especialidade de Ciências da religião deram ainda novas perspectivas para os pesquisadores das universidades na qual o campo religioso foi estabelecido (CAPELLARI, 2001, p. 141).
São inúmeras as religiões estudadas no Brasil de 1900 a 2000: As Religiões Evangélicas, o Espiritismo Kardecista, as Religiões Afro-brasileiras, as Religiões da Ayahuasca (Santo Daime e União Vegetal), as Religiões Orientais (Hare Krishna, o Budismo, o Zen-Budismo, o Yoga, as Religiões japonesas) o Judaísmo, o Islamismo, a Antroposofia, a Religião da Boa Vontade, Xintoísmo, o Catolicismo, Religiões Chinesas, a Perfect Liberty, a Seicho-no-ie, a Sokagakkai, práticas religiosas “esotéricas” (Vale do Amanhecer, Fraternidade Eclética Espiritualista Universal), movimento Nova Era, Taoismo, Sufismo.
Tais estudos dão a chance de proximidade entre a religião e a ciência, visto que um estudo aprofundado sobre uma denominação religiosa, mesmo que com intenções exclusivamente científicas podem trazer a tona ideias ainda não pensadas sobre aquela denominação, acrescentar ao campo religioso inovações significativas ampliando ainda mais o debate e promovendo o melhor conhecimento das mais diversas manifestações religiosas. Há uma via de mão dupla em relação ao conhecimento religioso. De um lado o conhecimento do fenômeno religioso a partir de pesquisas científicas, de outro esse conhecimento observado de forma empírica envolvendo também as subjetividades dos praticantes dessas manifestações. Neste sentido essa relação entre ciência e religião faz proporcionar o estudo das religiosidades a partir de dentro, envolvendo o que ocorre nos ritos, a visão dos fundamentos das crenças, as suas finalidades, intenções, éticas, as representações dos crentes, os imaginários e os dogmas.


TABELA 1

RELIGIÃO MÍSTICA / Contemplação
RELIGIÃO ASCÉTICA / Ascese
Profeta: exemplar
Profeta: emissário
Religiões: Budismo
Religiões: Zoroastrismo, judaísmo, cristianismo, islamismo
Fiel: receptor do divino (somente iniciados)
Fiel: instrumento de Deus (para todos)
Tendência: Imanência e despersonalização do divino / mística e ascese fora do mundo.
Tendência: Personalização do divino / ascese dentro do mundo.



Referências

ARAGÃO, Gilbraz. Comentário: Interfaces metodológicas das ciências humanas e das teologias. Recife, 2010. [Banco de dados do Curso de Mestrado em Ciências da Religião da UNICAP].

BRAGA, Marco. GUERRA, Andreia. REIS, José Cláudio. Breve história da ciência moderna. Vol. 4: A belle-époque da ciência moderna (séc. XIX), Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

CAPELLARI, Marcos Alexandre. Sob o olhar da razão: As religiões não católicas e as ciências humanas no Brasil (1900-2000). Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Departamento de história. São Paulo, 2001.

LESBAUPIN, Ivo. Marxismo e religião. Cap. 1. In: TEIXEIRA, Fautino (Org.). Sociologia da religião: enfoques teóricos. 4ª ed. Petrópolis, Vozes, 2011 [p. 13-35].

MARIS, Cecília Loreto. A sociologia da religião de Max Weber. In: TEIXEIRA, Fautino (Org.). Sociologia da religião: enfoques teóricos. 4ª ed. Petrópolis, Vozes, 2011 [p. 67-93].

MARTINS, Lilian Al-Chueyr Pereira. História da ciência: objetos, métodos e problemas. Ciência & Educação, v. 11, n. 2, p. 305-317, 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ciedu/v11n2/10.pdf>, Acesso em 16 fev. 2014.

MENESES, Renata de Castro. Marcel Mauss e a sociologia da religião. In: TEIXEIRA, Fautino (Org.). Sociologia da religião: enfoques teóricos. 4ª ed. Petrópolis, Vozes, 2011 [96-124].

SANCHIS, Pierre. A contribuição de Émile Durkheim. Cap. 2. In: TEIXEIRA, Fautino (Org.). Sociologia da religião: enfoques teóricos. 4ª ed. Petrópolis, Vozes, 2011 [p. 36-66].

STEIL, Carlos Alberto. Evans-Printchard: da religião dos outros à experiência pessoal. In: TEIXEIRA, Fautino (Org.). Sociologia da religião: enfoques teóricos. 4ª ed. Petrópolis, Vozes, 2011 [p. 125-157].

TEIXEIRA, Fautino (Org.). Sociologia da religião: enfoques teóricos. 4ª ed. Petrópolis, Vozes, 2011.

1A tabela 1 apresenta algumas características que Max Weber destaca para diferenciar a religião mística da religião de ascese, ambas com tipos de profestas diferentes.

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