quarta-feira, 5 de novembro de 2014

A religiosidade na pós-modernidade



Me. Manoel Gomes Rabelo Filho1

Resumo: Este texto apresenta características da pós-modernidade e suas implicações para as religiosidades. É discutido o sentido que a modernidade dá à religiosidade e à religião e suas respectivas mudanças em relação à pós-modernidade. Enfrenta-se os problemas decorrentes das críticas às religiões feitas pela modernidade e o avanço das religiosidades na pós-modernidade.

Palavras-chave: Pós-modernidade, modernidade, religiosidade, identidade, ateísmo.


As características da pós-modernidade apresentam intensas repercussões na sociedade e como consequência na religiosidade. A alteração da vida social e a interconexão entre o global e o pessoal geram novas formas de auto-identidade, fragmentando o indivíduo. Há uma tendência de reorganização do tempo e do espaço, que se reconfiguram a partir do desenvolvimento das tecnologias. Aumentam as dúvidas sobre as realidades da vida chegando-se a uma dúvida radical que faz revisar hipóteses a cada momento. Cresce a confiança em relação a algumas ameaças e novos riscos são introduzidos, especialmente aqueles que as gerações anteriores nunca enfrentaram. A comunicação influencia a auto-identidade e existe uma diversidade de opções de estilos de vida. Dessa forma há uma crise de identidade em relação a tradição, as antigas formas de comportamentos, abalando os quadros de referências.2


A sociabilidade e o conhecimento apresentam-se, através da experiência vivida, como alternativas de sobrevivência no meio cultural. É a alteridade o núcleo central das culturas, e nela está a raiz da vida social. Construímos legitimidade e respeito a partir da alteridade e da diferença e isto nos faz ver nossa própria identidade. O desenvolvimento da identidade pela sociabilidade pode buscar a legitimidade através de um critério ético que proporcione cuidados à existência humana. “A vida tem que ser respeitada para que seja garantida a sua integridade, o que existe é uma atitude de reverência e de cuidado com todos os seres”.3 A diferença, portanto, desenvolve a diversidade e dá espaço para a democracia e para uma convivência plural, mesmo através de conflitos, que em grande parte são conflitos legítimos. No imaginário moderno perpassam a concepção de uma modernidade com o sentido de libertação da sociedade humana das amarras da tradição e da ignorância, o que representa a visão medieval da vida. Dessa forma é que a modernidade se caracteriza pela negação de qualquer forma social pré-moderna, uma descontinuidade histórica, um período transitório com rupturas e fragmentações. Existe uma sensação de mudanças desenfreadas, um desenraizamento e uma perda de referenciais da vida social e pessoal.4


O sentido dado a esta modernidade e a pós-modernidade é que destitui suas referências para fornecer uma gama complexa de indicações desconexas. Uma época que destrói parte do que se vivia antes, e reconstrói o novo com o objetivo de alicerçar uma nova sociedade e que volta a destruir para alcançar novas implementações. O moderno encontra-se num ambiente de aventura que ameaça destruir o que temos, o que sabemos e o que somos, para que, de forma criativa, se possa destruir e ao mesmo tempo inovar, realizando uma “autodestruição inovadora” nos processos culturais, sociais e religiosos.5


Entende-se a cultura e a sociedade modernas como o estilo de vida que usa a modernidade como justificação do projeto capitalista. A burguesia fez isto, ao valorizar a modernidade como um contexto sócio-histórico seu, ao dar todas as capacidades instrumentais de dominação da natureza e de outros seres humanos à razão humana. Esta visão estabelece que a religiosidade é uma chave de leitura exclusiva do mundo medieval, ao qual a sociedade deveria combater e superar. Assim é que Marshall estabelece um conceito de modernidade como a era da razão instrumental:


É o estilo de vida, de organização social e uma forma de representação da realidade que se desenvolve sobretudo a partir do século XVII, na sociedade européia, que foi apropriado pelo capitalismo no qual a destruição criativa e a razão instrumental são suas marcas registradas.6


A religiosidade na pós-modernidade precisa manter o diálogo com a cultura recente, questionando os preconceitos e mantendo a tradição desenvolvida pelos povos. Rompe-se neste sentido, com as verdades absolutas e inquestionáveis e busca-se uma espécie de “mega-ecumenismo” incluindo grupos religiosos e arreligiosos. As críticas à religião, desenvolvidas de forma eficiente por uma diversidade de pensadores a partir do século XIX, sobre a legitimidade e a coerência da religiosidade, proporciona reflexão e abertura para o diálogo. K. Max, S. Freud e F. Nietzsche convencem muitos religioso.7


A religiosidade que descarta as críticas com pressupostos reflexivos abandona o caminho para uma discussão madura. Identifica nas controvérsias os elementos com fatores positivos de respeito, diálogo e o fortalecimento da própria identidade religiosa.


Este diálogo fornece caminhos para entender a relação entre religiosidade e pós-modernidade. Apresentam-se mundos de problemas e visões da realidade diversificadas, as mudanças são sugeridas continuamente. Insatisfação e angústia continuam. É fato que “na modernidade as pessoas precisam ser convencidas e na pós-modernidade elas precisam ser seduzidas”.8 Existem situações que trazem dor e sofrimento, mas existem as apaixonantes que podem resgatar o sentido da vida. “O novo é fascinante porque abre sulcos no deserto, ressuscita os ossos, mobiliza pessoas, grupos e instituições e, sobretudo, renova razões para viver e sonhar.”9 A busca destas razões é o que move o mundo humano. As razões científicas possuem intenções de objetividade e as razões religiosas fornecem resgates morais e simbólicos. Em cada forma racional de entender este mundo há um conjunto de pretensões que geram condenações mútuas.


Bombas atômicas na guerra nuclear, guerra fria entre Ocidente e Oriente, muro de Berlim que separa povos, cercas como símbolo da liberdade na era cristã Ocidental, o novo vigor do capitalismo pelo neoliberalismo, revelam-se como problemas pós-modernos. A supremacia da lei do mercado está acima das intenções de se fazer o bem. A tecnologia vem sendo consumida como uma necessidade, substituindo a produção de bens elementares para atender a desejos cultivados pelo neoliberalismo. Pergunta-se, onde está Deus nesta série de injustiças sociais? Onde está o sagrado das religiões que poderia fornecer orientações para estas realidades irreconciliáveis? “O contrário de tudo isso é Deus. Deus está presente no contrário. Nossa luta em favor da justiça e da paz brota da convicção de que Deus está na injustiça proclamando o seu contrário, ele está na guerra anunciando o seu contrário.”10 O sagrado das religiões se revelam nas entranhas dos problemas humanos, até mesmo aqueles que fazem mal para os outros seres humanos, tendo como perspectiva a superação do profano, identificada aqui como as injustiças que estão veladas nas explorações e opressões. Do ponto de vista cristão é o profeta que denuncia tudo isso, mesmo que os problemas não apareçam de forma clara.


A modernidade procurou mostrar-se superior às religiões pelas críticas que fazia à Idade Média e à cristandade. Esta modernidade aponta para as realidades sociopolítico-econômicas justificando os seus ganhos e o colonialismo, buscando, pela morte do outro, o desenvolvimento de totalidades que centralizam-se na própria identidade, “a ponto de quase não sobrar lugar para o diferente dela”.11


A religiosidade, entendida como “a dimensão mais profunda da totalidade da vida humana [...] é a busca da abertura ao transcendente, àquilo ou Àquele que ultrapassa a superfície da vida, é o sentido radical da existência.”12 Ela é a busca do sentido radical, ao sentido mais fundamental da existência humana e de sua totalidade. Este significado de religiosidade pode interagir com as ideias da pós-modernidade, visto que ele não é exclusivo das religiões, mas possui uma abertura aos valores das situações concretas. Uma das chaves para este problema é procurar enfrentá-lo de forma a verificar fatores positivos, tanto das religiões em relação à modernidade quanto da pós-modernidade em relação às religiões. O diálogo só não é possível se cairmos num fundamentalismo religioso ou num relativismo científico e filosófico. As interrogações atuais devem partir de uma reflexão de uma metodologia diferentes das do passado e que permitam dar sentido e profundidade aos referenciais modificados pela pós-modernidade. Neste sentido é possível educar a pessoa humana que o único ponto de referência para si mesma é que não tem passado e nem futuro, apenas um presente? Para que serve a educação da religiosidade, se não há paradigmas e nem é possível uma ética que tenha valor universal? Como trabalhar para não chegarmos à relativização do absoluto e à absolutização do relativo?13


Estes questionamentos revelam o paradigma que envolve a religiosidade na pós-modernidade. Os referenciais, os contextos e os valores estão em cheque em vista do fortalecimento do capitalismo globalizado e neoliberal. É como se fosse o fim da história para a existência humana, retratando aspectos mecânicos, simplistas e redutores da realidade a uma ordem específica na qual somente o capitalismo faria sentido.


A Idade Moderna tentou reduzir a realidade às leis e princípios aplicados a partir da relação de causa e efeito tanto nas ciências quanto na vida cotidiana. Pretendia-se desenvolver um pensamento que dominasse a natureza e que tornasse o ser humano um sujeito objetivo, com poderes de dominação sobre os outros e a natureza, negando a alteridade.


A pós-modernidade pretende quebrar essas amarras de elementos fixos na realidade e entendê-la como complexa e plural. Uma compreensão da realidade que ouça mais a memória do que o progresso ilimitado. A objetividade moderna busca o verdadeiro mantendo autoridade a alguém, já o pós-moderno afirma que este verdadeiro não é natural, mas construído humanamente e possível de ser dissolvido.


Nietzsche, considerado um dos iniciadores da pós-modernidade, escandaliza por afirmar a morte de Deus. Mas qual é o Deus que ele pretende destruir com o seu niilismo? Ele pretende destruir a ideia de pressupostos, das certezas absolutas, de um deus com valores que suplanta o ser humano, um deus violento, um deus que justifica a estrutura da sociedade a qual Marx criticava, o deus que ilude por uma falsa ideia de salvação. Ele deseja destruir ainda uma fé que faz fugir da realidade, que faz sofrer. Nietzsche quis dizer que não há um fundamento para nada, nem para afirmar que Deus exista ou não exista, que uma religião tenha ou não que existir. Neste pensamento estão um dos fundamentos do ateísmo moderno, mas ao mesmo tempo morre um tipo de moral religiosa e uma lei universal que mais justificam a forma com que vivemos do que a transformam. Se não é negar e nem afirmar Deus ou a religião, então em que sentido pode-se dizer que Nietzsche tinha razão?


[...] se a religião não pode ser afirmada racionalmente, também não pode ser negada racionalmente. Por isso a pós-modernidade não tem medo de dizer que a religiosidade, a religião e Deus podem existir e podem ser captados por outras vias e outras dimensões que não seja simplesmente a racionalidade.14


Tomou-se apenas um autor para ilustrar as críticas que são feitas à religião pela pós-modernidade. Essa crítica não é simplesmente centrada na negação ou afirmação de algo, mas foca a condição específica da pós-modernidade que é deixar em suspense a afirmação, levando em consideração o contexto, a situação específica que nos faz afirmar algo como verdadeiro. Estão sendo observadas outras dimensões e não somente a racionalidade irrestrita para se confirmar algo.


Vale concluir que a religiosidade na pós-modernidade é representada como uma dimensão humana efusiva, que se destaca como meio simbólico do ser humano, enquanto celebra. É o que questiona sobre o sentido último da existência do ser humano, enquanto reflete. A religiosidade é a visão de mundo que catalisa interpretações justificadoras do sentido da vida. Ela é provedora da flexibilização das visões individualistas, solitárias e promotora de orientações comunitárias que alcançam outros sentidos, para além das nossas próprias possibilidades finitas.



Referências

CARIAS, Celso Pinto. Teologia para todos: manual de iniciação teológica a partir de seus principais temas. Petrópolis: Vozes, 2007.

GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

LYON, David. Pós-modernidade. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 2005.

PADEN, William E., Interpretando o sagrado: modos de conceber a religião. São Paulo: Paulinas, 2001.

SANCHES, Wagner Lopes. Pluralismo religioso: as religiões do mundo atual. Temas do Ensino Religioso. São Paulo: Paulinas, 2010.

SANDRINI, Macos. Religiosidade e educação no contexto da pós-modernidade. Petrópolis: Vozes, 2009.

VIEIRA, José Álvaro Campos. Os sem religião e a concepção de espiritualidade não religiosa de Marià Corbí. Demanda Universal, 2012.



1Mestre em Ciências da Religião – UNICAP/2012, Coordenador do Ensino Religioso de Roraima.


2GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.


3SANCHES, Wagner Lopes. Pluralismo religioso: As religiões do mundo atual. São Paulo: Paulinas, 2010, p. 18.
4SANCHES, 2010, p. 26.

5Ibidem, p. 28-29.

6MARSHALL apud SANCHES, op. cit., 2010, p. 29.

7CARIAS, Introdução à Teologia. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 13.

8SANDRINI, Marcos. Religiosidade e educação no contexto da pós-modernidade. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 9.

9SANDRINI, op. cit., 2009, p. 10.

10Ibid., 2009, p. 15.

11BOFF apud SANDRINI, op. cit., 2009, p. 17.

12SANDRINI, op.cit., 2009, p. 17.

13SANDRINI, op. cit., 2009, p. 24.

14SANDRINI, op. cit., 2009, p. 144.

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